Ao substituir médico da UBS em Mâncio Lima, infectado com a COVID-19, pesquisador da USP tem de lidar com incertezas relacionadas ao tratamento da doença
Ao substituir médico da UBS em Mâncio Lima, infectado com a COVID-19, pesquisador da USP tem de lidar com incertezas relacionadas ao tratamento da doença
Ao substituir médico da UBS em Mâncio Lima, infectado com a COVID-19, pesquisador da USP tem de lidar com incertezas relacionadas ao tratamento da doença
Ao substituir médico da UBS em Mâncio Lima, infectado com a COVID-19, pesquisador da USP tem de lidar com incertezas relacionadas ao tratamento da doença
Agência FAPESP – No terceiro episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá, Marcelo Urbano Ferreira descreve protocolos utilizados no tratamento de pacientes com COVID-19 em Mâncio Lima, no oeste do Acre, e conta que, na ausência do médico, infectado com o SARS-CoV-2, ele próprio assumiu o atendimento dos doentes. Ferreira e Marly Augusto Cardoso, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), respectivamente, realizam pesquisa no Vale do Juruá, com apoio da FAPESP. O objetivo é rastrear a disseminação do novo coronavírus na região.
Episódio 3: O atendimento
Azitromicina, ivermectina e Tamiflu: kit local contra a COVID-19
* Depoimento de Marcelo Urbano Ferreira à Agência FAPESP
7 de agosto, sexta-feira
Outro dia cheio na Unidade Básica de Saúde Raimundo Reginaldo de Almeida. Hoje é feriado na cidade, mas mesmo assim veio muita gente. Fizemos 17 exames.
Tivemos a companhia da Amanda Sampaio – bióloga e aluna de mestrado na UFAC – e Ana Alice Damasceno – enfermeira e professora da UFAC, que faz doutorado na USP. Amanda vem trabalhando em nossos projetos de pesquisa em malária financiados pela FAPESP há dois anos, tanto como entrevistadora como realizando procedimentos laboratoriais, mas hoje estava encarregada do registro das atividades. Ana Alice vem participando desde 2015 do projeto MINA, coordenado por Marly – um amplo estudo de saúde materno-infantil financiado pela FAPESP.
Hoje trabalhamos das 7h às 11h. Comparando com ontem, o fluxo de pacientes foi um pouco menor, algo esperado por ser feriado. Foram 17 atendimentos, dos quais seis com teste positivo para antígeno. Em um caso, tivemos de repetir o exame, pois o aparelho de leitura da amostra falhou. Assim, restam-nos somente cinco testes para segunda-feira, justamente o dia com maior afluxo de pacientes na semana.
Entre os atendidos, mais colegas de trabalho do rapaz cuja festa surpresa de aniversário originou um pequeno surto. Um deles com teste positivo. Vieram também pessoas que tiveram contato com outros indivíduos com infecção diagnosticada ontem. Portanto, se fosse possível manter a testagem de modo rotineiro, o rastreamento de contactantes seria mais completo, permitindo uma orientação mais incisiva quanto às medidas de distanciamento social.
Uma das pacientes é enfermeira do programa de saúde indígena. Trabalha com as três etnias do município de Mâncio Lima, os Nauas, os Poianauas e os Nukinins. Rosiê e seu marido, Renan, que é vereador em Mâncio Lima, estão muito expostos ao risco, mas felizmente tiveram exames negativos hoje.
Renan sugeriu que visitássemos a aldeia dos Poianaua, aqui perto. De fato, nunca estive lá, mas creio que agora não seja o momento para eles receberem visitas. Muito menos de gente tão exposta à infecção como é o nosso caso. Em dois dias, tivemos contato direto com pelo menos 14 pacientes com carga viral suficiente para a detecção pelo método diagnóstico que utilizamos.
Tenho evitado conversar sobre o tratamento medicamentoso de COVID-19 com os colegas locais. Há um protocolo local, informal, mas amplamente adotado, baseado no uso precoce de azitromicina, ivermectina e eventualmente de oseltamivir (Tamiflu). Curiosamente, a cloroquina não faz parte desse protocolo, ainda que eventualmente alguns médicos a prescrevam. Compreendo que esse “pacote de medicamentos” tenha surgido da necessidade de oferecer algo aos pacientes, angustiados por terem uma doença tão pouco conhecida e potencialmente grave.
Como médico, não participo rotineiramente de assistência clínica. Portanto, não posso dizer que tenha alguma experiência pessoal no tratamento da COVID-19. Com a cloroquina, tenho quase 30 anos de experiência no tratamento da malária, incluindo um ensaio recente sobre a eficácia terapêutica, com análise de efeitos colaterais, financiado pelo Ministério da Saúde, que realizamos aqui em Mâncio Lima. Um medicamento seguro nas doses utilizadas no tratamento da malária, a cloroquina não tem nenhuma eficácia clínica na COVID-19. Curiosamente, a cloroquina não é muito popular por aqui, precisamente porque muita gente já a tomou para tratar alguma malária. Parece que ficou difícil convencer a todos de que o remédio mágico contra a COVID-19 fosse algo tão corriqueiro assim...
Com a ivermectina, minha experiência limita-se a uma das indicações reais do medicamento – o tratamento da filariose. Há alguns anos, coordenei um estudo sobre mansonelose no sul do Amazonas, em um município chamado Boca do Acre – local em que se encontram o rio Acre e o rio Purus, daí o nome. Era um estudo apoiado pela FAPESP sobre a resposta imune celular na mansonelose, em que tratamos todos os indivíduos com infecção diagnosticada pela presença de microfilárias circulantes. Ivermectina é essencialmente um anti-helmíntico (os antigos usam o termo “vermífugo”, que não é muito adequado a este medicamento porque ele não “expulsa” os vermes) que também age contra ectoparasitas como pulgas e piolhos. É muito usado em medicina veterinária. Nos pacientes com mansonelose, uma filariose comum na Amazônia que cursa sem sintomas característicos, o tratamento com ivermectina desencadeia uma grande resposta inflamatória ao destruir as microfilárias circulantes. Quase todos os pacientes ficam um dia de cama após o tratamento, com febre e dores pelo corpo, mas não há relatos de efeitos colaterais mais sérios. Por isso, sempre explicávamos o risco de reação após o tratamento antes de administrar a ivermectina aos pacientes com mansonelose, mas todos preferiam ser tratados.
E na COVID-19, por que se usa ivermectina? Na verdade, não se usa. Essa é uma prática que se tornou comum na Amazônia, supostamente por causa de um único estudo in vitro, realizado na Austrália, que teria indicado certo efeito antiviral do medicamento. Nada conclusivo. Não há estudos mostrando sua eficácia contra SARS-CoV-2 em pacientes. Mas a ivermectina vem sendo amplamente usada também em outros países. Na Amazônia peruana, por exemplo, grupos ligados a igrejas locais vêm administrando ivermectina injetável, originalmente de uso veterinário, em pacientes com COVID-19. Sem nenhuma base científica. Acreditam tratar-se de uma “vacina” contra a COVID-19...
Azitromicina é um antibiótico que pode ter algum papel no tratamento de infecções bacterianas secundárias em pacientes com COVID-19, mas sem efeito antiviral direto. É um antibiótico que vem sendo amplamente prescrito sem indicação clínica, uma lástima em tempos de resistência crescente aos antimicrobianos.
O uso de oseltamivir só estaria justificado em caso de dúvida diagnóstica. O medicamento é caro e sua eficácia comprovada é contra o vírus influenza, que produz um quadro clínico que pode ser confundido com COVID-19, mas não contra o SARS-CoV-2.
Ora, por que estou dizendo agora isso? Porque hoje o médico a cargo do atendimento dos pacientes veio perguntar minha opinião sobre esses medicamentos na COVID-19. Nessas ocasiões, quando um colega pede explicitamente minha opinião, não me furto de externá-la. Disse-lhe exatamente o que acabo de relatar. Caso contrário, não comento nada. Afinal, nesses tempos estranhos em que vivemos, nem mesmo o Conselho Federal de Medicina tem-se pronunciado efetivamente contra o charlatanismo...
Mas se me perguntarem sobre o uso de ayahuasca no tratamento de COVID-19, algo comum entre comunidades indígenas do Acre, direi apenas que o fortalecimento do corpo e do espírito pode ajudar no combate a uma doença ainda pouco conhecida entre nós.
Nenhum dos pacientes vistos entre ontem e hoje tinha uma forma grave da doença – nem mesmo a senhora de 77 anos que testou positivo ontem. Mas, no ambiente hospitalar, há dois medicamentos que comprovadamente vêm salvando pacientes com COVID-19, quando bem indicados: os anti-inflamatórios esteroides (corticosteroides) e os anticoagulantes derivados da heparina [leia mais em agencia.fapesp.br/33175/].
Não temos trabalho programado para o final de semana, mas amanhã ficaremos de sobreaviso caso haja alguma demanda. O posto de saúde estará fechado.
9 de agosto, domingo
Aproveitamos para visitar o rio Croa, perto de Cruzeiro do Sul. Almoçamos por lá. Visitamos Cíntia, que tem uma pequena pousada e restaurante à beira do rio, que nos serviu um delicioso surubim assado na folha de bananeira. O Croa é um lugar belíssimo – dizem que habitado por uma sereia chamada Janaína. Em geral, cheio de vitórias-régias, mas hoje não vimos nenhuma.
Joyce [Ajucilene Gonçalves Mota], secretária de saúde de Mâncio Lima, acaba de entrar em contato comigo. O médico responsável pelo atendimento de amanhã no posto Raimundo Reginaldo está com COVID-19. Segunda-feira é dia de grande movimento; ela está buscando algum substituto... Vamos nos encontrar amanhã no posto de saúde.
10 de agosto, segunda
Fomos ao posto de saúde sentinela com os cinco testes diagnósticos restantes. Esperávamos bastante gente; segunda é dia de movimento mais intenso, pois há certo represamento no final de semana. Com poucos testes, imaginamos que até a metade da manhã já teríamos encerrado os trabalhos.
De fato, havia muita gente aguardando exames e consultas. Mas o médico responsável pelo atendimento na manhã de hoje estava com COVID-19 e Joyce não conseguiu nenhum substituto.
Combinei que faria primeiro os testes diagnósticos dos pacientes que já tinham passado por avaliação clínica e que chegaram com pedidos de exame preenchidos. A seguir, atenderia os pacientes que chegavam para primeiro atendimento. Logo fizemos nossos cinco testes, dos quais um foi positivo. Assim, fechamos essa etapa do estudo com 49 amostras colhidas, 15 positivas no teste de detecção de antígeno de SARS-CoV-2, todas adequadamente preservadas para posterior análise por RT-PCR e sequenciamento genômico.
Para a avaliação clínica, foram uns 20 pacientes durante a manhã, dos quais pelo menos um quarto teve o diagnóstico de COVID-19 confirmado. Nenhum grave, mas alguns casos potencialmente preocupantes, incluindo uma senhora com enfisema pulmonar.
Embora o atendimento a pacientes não faça parte de minha rotina de trabalho como pesquisador, gosto bastante dessa atividade. Já estava adequadamente paramentado, o consultório do posto de saúde estava bem organizado e a equipe de enfermagem prestou apoio muito competente. Portanto, sem dificuldades. Cris e Héliton, os excelentes enfermeiros, formaram-se na UFAC, onde foram alunos da Ana Alice Damasceno, que nos acompanhou na sexta-feira.
Os dias de trabalho no posto de saúde foram muito agradáveis e produtivos. Acima de tudo, o acaso produziu uma complementaridade curiosa. Na quinta e na sexta-feira, havia poucos testes diagnósticos disponíveis no posto; por isso, os diagnósticos que fizemos tiveram um papel fundamental no atendimento aos pacientes. Hoje, tínhamos poucos testes restantes para o diagnóstico de COVID-19, mas o posto havia recebido um novo lote de testes rápidos para detecção de anticorpos. Assim, nosso diagnóstico laboratorial foi menos importante, mas em compensação pudemos suprir a ausência do médico local. Assim, a parceria de alguns anos se fortalece.
No boletim de quinta-feira (22/10) você confere o quarto episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá. O primeiro episódio já está disponível em agencia.fapesp.br/34385/. O segundo episódio pode ser acessado em agencia.fapesp.br/34397/.
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